TRANCOSO

A incrível história de uma minúscula vila baiana que passou a freqüentar as colunas sociais, tornou-se chic e descolada. Sem perder a simplicidade que só muito dinheiro pode comprar .

A vila de Trancoso freqüenta as colunas sociais dos jornais de São Paulo. Fulano foi para lá, sicrano está lá, beltrano acaba de chegar de lá, noticiam César Giobbi e seus pares, nas linhas, poucas, que o beautiful people da Paulicéia lê todas as manhãs.

Trancoso merece tanto destaque nesses espaços quanto, por exemplo, a Rua Oscar Freire, o Fasano e a Daslu. O leitor desavisado, que não visita essas páginas, há de supor que Trancoso fica nos Jardins.

Os que sabem que não é nada disso, mas ainda não foram até o sul da Bahia para vê-la de perto, têm motivos para inferir que - diacho! - Trancoso deve ser uma Oscar Freire na Costa do Descobrimento.

A avaliação é correta. Mas só de 20 de dezembro a 5 de janeiro. No Réveillon, os habituês da Oscar Freire (e das colunas sociais) vêm todos para cá. Usam jatinhos, aterrissam nos 1500 metros de pista do Condomínio Terranova e desaparecem em suas propriedades milionárias de Itapororoca ou da Praia dos Nativos. Mas só durante a manhã.

À tarde, passeiam na praia, ouvindo a música lounge que emana das barracas de estilo asiático; juntam-se para beber as caipirinhas que o bom Geraldo prepara no Bar da Estrela d'Água e alegram-se quando seu Manoel do Abacaxi vem chegando, com as frutas na caçamba da carroça movida pelo jegue Motorzinho.

Quadrado mágico
Motorzinho, que anda com um cesto de lixo sob o rabo por imperiosas razões de higiene, aguça a saudade dos poodles e dos yorkshires que não puderam vir de Sampa. Até suspira de tão afagado.

Mas é quando a noite cai que Trancoso fica mais pau- listana. Alguma coisa acontece na Praça São João.

Ou no Quadrado, como é conhecido, com absoluta imprecisão geométrica, visto que é retangular.

Nada, para dizer a verdade - e é desse nada sublime, silencioso, à luz de velas ou das estrelas que a vila tirou sua reputação, hoje internacional.

E tudo, também. Porque todo mundo vai lá. Para comprar o que for (a preços da Oscar Freire), para comer o que houver (com a sofisticação e o tempero dos Jardins) -, para namorar atrás da igreja, vendo o mar de prata nas noites de luar.

O festim paulistano dura quinze dias, um pouco mais, um pouco menos, conforme o calendário. Depois, que é quando você deve vir, Trancoso volta a ser Trancoso. Não a vila que há trinta anos tinha 200 almas e onde só era permitido aos moradores do lado direito do Quadrado que se casassem com os do lado esquerdo para evitar excesso de consangüinidade.

O Homem que não dançou
"Vamos comprar esse troço ou vamos dançar", disse, certo dia, o ex-hippie Ricardo Salem a seu amigo Calé, assustado com a explosão da vizinha Porto Seguro. Foi quando Ricardo deixou de ser hippie e Trancoso encontrou seu destino. Hoje, Ricardo e Calé são "donos" e guardiães da vila. Sua paixão de pioneiro pelo modus vivendi nativo é a sala de triagem para quem quer instalar-se no lugar.

A Trancoso da baixa temporada ainda tem muito de nativa, sim senhor, mas, impregnada pelo DNA da Oscar Freire, desenvolveu uma trajetória peculiar.

Suas praias são tão verdes e belas quanto as de localidades vizinhas como Arraial d'Ajuda, Porto Seguro ou Caraíva. Suas falésias são empinadas e coloridas como as demais. O mesmo se pode dizer da barra dos rios, dos mangues, dos vestígios de Mata Atlântica.
A diferença são os muitos zeros a mais nos preços de suas terras, equivalentes, é claro, aos zeros a mais da conta bancária dos transeuntes da Oscar Freire.

E o Quadrado, é claro. Esse, de fato, mágico (viu Parreira?). Na definição abalizada de Ricardo Salem, um dos pioneiros da tomada da vila pelos hippies nos anos 70 e, hoje, um dos donos de Trancoso, "a Praça de São João tem o valor da Piazza de San Marco, em Veneza, ou da Praça Vermelha, em Moscou".

O charme de Trancoso emana do Quadrado, que é um retângulo com 300 anos de silêncio e paz. Mas se você prestar atenção, aqui é, também, a Oscar Freire da Bahia

Quem olha assim de relance não diz. Trata-se de um espaço de concepção jesuítica. No alto de um morro, um campo verde, muito verde, com uma igreja muito simples no fundo. Uma fileira de casinhas coloridas à direita; outra, à esquerda. Duas traves para o sagrado futebol de todas as tardes. Amendoeiras sob cuja sombra bebe-se cachaça desde os tempos de El Rey e onde hoje o saquê anda na moda.

Sessenta casinhas, cada uma com uma história de roças e pescarias que ultrapassa o limite de sua área exígua. Quase todas, agora, ocupadas por lojas chiques. Muitas delas mais transadas que as da Oscar Freire. Outras transformadas em restaurantes e pousadas que são um mostruário de boa arquitetura. Todas, porém, tombadas pelo Patrimônio Histórico, com suas fachadas simples preservadas por lei.

Na frente da igreja, uma bandeirola para São João e outra para São Brás, os padroeiros. Atrás, um descampado com vista para o mar - 50 metros abaixo, além do mangue. Segundo os especialistas, um dos melhores lugares para namorar em todo o planeta.

O artista plástico Carlos Pontual, o Baratão, outro dos hippies que inalaram Trancoso em seus primórdios, fez seu retrato do Quadrado. Pode-se vê-lo no Hotel da Praça. Vê-se o gramado, a igreja, o povo nas casinhas. A parte que fica atrás da Matriz e vai até a borda do barranco, ele cobriu com invólucros de camisinhas. Todos eles, diz-se, coletados no local.

A vinda dos biribandos
É preciso aferir as contas, mas tudo indica que as casinholas do Quadrado superaram os preços da Vieira Souto e da própria Oscar Freire. Dois milhões de reais é o que se pagou, ainda outro dia, por uma dessas portinhas. Seu João Lima, um nativo que vive da aposentadoria, dos peixes que busca no Rio Trancoso e de "uma rocinha", resiste à investida dos compradores. Da janela, acha bonito o Quadrado bem pintadinho, e rejeita os milhões que lhe oferecem: "Dinheiro desvia fácil", encerra a conversa.

O bravo resistente
Quase todas as sessenta casinhas que circundam o Quadrado tornaram-se lojas de grife, pousadas e restaurantes. Os nativos, alguns mais, outros menos, venderam-nas a preço de ouro. Seu João Lima, pescador aposentado, acompanha tudo da janela do lugar em que vive há quarenta anos e não quer saber de sair. "Dinheiro que a gente ganha desvia fácil", filosofa, depois de recusar mais uma proposta. Essa de 1400000 reais.

Foi gente assim que o malgaxe Gilbert, Silvinha, Calé, Isa, Augusto, Lia, Ricardo, Baratão e Fernanda Manga encontraram nesse ermo no início dos anos 70.

Diz-se que eram hippies tão malucos que Arembepe - onde quase todos estiveram pouco antes - , lhes pareceu careta demais. Quase todos provinham de famílias bem providas de São Paulo e do Rio; quase todos queriam mesmo é não saber da ditadura, da resistência e do milagre econômico.

Os nativos logo os chamaram de biribandos, pois esse era o nome que seus antepassados davam aos ciganos que vez por outra apareciam, levando-lhes galinhas e utensílios.
A crônica dessa convivência é rica e está registrada no livro Nativos e Biribandos, escrito em 2004 por Fernanda Carneiro (Manga Rosa), Cristina Agostinho e fotografado por João Farkas.

Há duas décadas, praticava-se o escambo na vila. Hoje, o que se troca é o taco de golfe, para atingir o buraco 14 sem perder a bolinha nas falésias

E como não havia o que temer - os novos biribandos eram tão inofensivos e prostrados que o povo apiedado lhes oferecia comida e pouso -, foram bem recebidos e ficaram.

Há muitas maneiras de contar o que aconteceu entre aqueles idos e os empreendimentos milionários da Trancoso de hoje. A mais curta e objetiva é uma frase proferida, provavelmente, uma década mais tarde, por Ricardo Salem em conversa com outro biribando, Carlos Eduardo Régis Bittencourt, o Calé. Deve ter sido embaixo de uma amendoeira: "Pelo amor de Deus: vamos comprar esse troço ou vamos dançar".

Assustados com a possibilidade de ver o litoral recortado em lotes miudinhos - como já estava acontecendo um pouco ao norte, em Porto Seguro -, eis que despertaram os empreendedores que hibernavam em velhas túnicas indianas.

Risco de viagem
Na Praia do Rio Verde, há quem venda brigadeiros de festinha de criança. E há quem compre com gosto e se regale, mesmo sabendo de que nem só de leite moça e chocolate são feitos esses quitutes. Uma turista sueca, de idade avançada, encontrou, recentemente, um desses doces dando sopa. Dois dias e quilômetros de caminhadas depois, entendeu que havia feito uma outra viagem dentro de Trancoso.

A determinação de só vender as enormes glebas adquiridas a amigos comprometidos com a preservação do lugar - e a conveniência de que esses amigos freqüentassem a Oscar Freire e endereços do mesmo padrão -, mudou o destino de Trancoso.

Vieram Gal, Elba Ramalho (com os seios de fora), empresários, publicitários, arquitetos. Novíssimos biribandos. Veio até o primeiro telefone público que, reza a lenda, foi inaugurado com uma chamada para Paris.

Depois veio a fama. Aquela fama discreta que funciona como um código entre iniciados de uma sociedade secreta. As casas foram despontando às margens da Praia dos Nativos, dos Coqueiros, do Rio Verde e de Itapororoca. Ninguém as via - até hoje quase não são percebidas -, porque os melhores arquitetos e paisagistas cuidaram de escondê-las à sombra das jaqueiras e dos dendezais.

O Club Med foi o precursor dos resorts na região. Há outros a caminho. Mas o grande barato de Trancoso são as pousadas de charme inigualável

Para atender à seleta clientela que se desenvolvia, surgiram os primeiros restaurantes de gastronomia ambiciosa. O Capim Santo, por exemplo, nascido nos arredores do Quadrado foi frutificar em São Paulo, na Vila Madalena e, mais tarde - quem diria? - nos Jardins. A casa onde Gal descansava de suas turnês recebia tantas visitas que assumiu sua vocação para pousada com o nome de Estrela d'Água.

Bolinhas nas tartarugas
Trancoso aconteceu. Em terras de Calé, instalou-se o maior e mais equipado village do Club Med do Brasil. E o loteamento Terravista, contíguo, com o mais belo campo de golfe do Brasil.

O buraco 14 - de seus dezoito - no alto de uma falésia virou sonho de consumo. É um dos mais cênicos do mundo, ainda que as bolinhas mal arremessadas cismem em atingir o casco das tartarugas que procriam na Praia do Taípe lá embaixo.

No mesmo endereço, há dois novos resorts projetados: o Leopoldo e o Hotel do Golfe. O Txai, de Itacaré, prepara sua filial trancosense. E há muitos outros projetos milionários em gestação nas tardes preguiçosas do Quadrado.

Abacaxi e motorzinho
Seu Manuel do Abacaxi e o jegue Motorzinho são figuras aguardadas nas praias de Trancoso. A bordo de sua carroça, frutas doces da região. Atento às questões sanitárias, Motorzinho não deixa sujeira na areia: um balde, pendurado sob seu rabo evita qualquer incidente.

Revista Próxima Viagem

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