BUENOS AIRES

A capital argentina respira tango e o único problema para quem a visita é entender a diferença entre tantas casas de show e milongas. Ou era, porque aqui mostramos tudo

O cavalheiro sai de um dos cantos do salão iluminado a meia-luz. Com passos firmes, cruza toda a pista. Terno de corte elegante, sapato envernizado, muito gel nos cabelos e pinta de conquistador. Ele vai ao encontro de uma morena de lábios carnudos que está no bar, de onde observa com o canto dos olhos os casais dançando. Ao chegar a seu objetivo, um piscar de olhos e um sinal com a cabeça são a senha para que ela aceite o convite para a próxima dança.

Essa cena, que parece saída de um filme das décadas de 40 e 50, é bem mais atual e acontece todos os dias. Não pense que o casal está em Nova York ou Paris. Está bem mais perto, mais precisamente em Buenos Aires, uma cidade em que o tango só perde para a parrilla em termos de preferência nacional. Considerada patrimônio cultural da cidade, a dança que virou estilo musical e foi imortalizada por nomes como Carlos Gardel e Astor Piazzolla está mais viva que nunca. É executada por artistas de rua, anima casas de shows com espetáculos tipo exportação, agita as tradicionais milongas e até embala a paquera dos jovens.

Surgido no final do século 19, o tango é uma mescla de ritmos. Foi influenciado pelos imigrantes italianos e espanhóis, pelos descendentes dos colonizadores e até pelos negros que permaneceram na Argentina depois da libertação dos escravos (tanto que no dicionário a palavra tango quer dizer: "reunião de negros para dançar ao som de um tambor"). Há controvérsias sobre sua nacionalidade. Os uruguaios puxam a sardinha para o lado deles. Já nossos hermanos juram de pés juntos que o tango surgiu na margem esquerda do Rio de la Plata. Discussões à parte, o fato é que os argentinos assumiram o tango e hoje não há como não associar o país vizinho ao ritmo.

Quando surgiu, a dança era considerada de baixo nível e animava bordéis. Hoje, é símbolo de Buenos Aires

Difundido nos subúrbios da zona sul da cidade, onde fica o bairro de La Boca, o tango era dançado em plena rua e era considerado de baixo nível. Na época, só era permitido homem com homem, pois era obsceno ver um homem e uma mulher dançando tão abraçados. Das ruas, foi para os bordéis, o que piorou sua fama. A imagem do tango só começou a melhorar por volta de 1910, quando chegou a Paris. Como a Cidade Luz era o centro de ebulição cultural do planeta, a dança ganhou o mundo e voltou para a Argentina repaginada, ganhando espaço na alta sociedade e nos cabarés mais luxuosos de Buenos Aires.

Gardel não morreu
Foi a partir daí que o tango viveu sua época áurea. Não dá para contar a história do ritmo sem falar da trajetória de Carlos Gardel, que virou uma espécie de Elvis Presley do tango, na década de 20. Chamado pelos argentinos de "moreno", arrastava multidões com a romântica "El Día Que me Quieras", que até hoje ecoa pelos cantos de Buenos Aires e virou uma espécie de hino da cidade.

Gardel também é motivo de peleja entre Argentina e Uruguai, que disputam a paternidade do artista. Um lado diz que ele nasceu na França, é filho de argentina e foi para Buenos Aires ainda pequeno. O outro, que ele é da cidade uruguaia de Tacuarembó. Para colocar mais lenha na fogueira na história desse mito franco-argentino-uruguaio, lembremos que o Brasil também tem parte no sucesso do cantor. Alfredo Le Pera, que ajudou Gardel a compor suas principais canções, era paulistano. Ambos morreram num acidente aéreo na Colômbia, em 1935. A memória do cantor é cultuadíssima. Em seu túmulo no cemitério Chacarita foi erguida uma estátua de bronze. Entre cartazes e vasos de flores, os fãs sempre deixam um cigarro aceso na mão direita da imagem.

Bem, deixemos um pouco a teoria e a história de lado e passemos para a prática. Há diversas maneiras de ver e sentir o tango em Buenos Aires. O mais fácil é começar ao ar livre e se divertir com os artistas que se apresentam na rua. Um dos pontos preferidos por eles é a Calle Florida, bem em frente às Galerías Pacífico. O casal de bailarinos Guillermo e Florencia Díaz se apresenta no local há três anos. Ele largou a profissão de vendedor depois da crise que abalou a Argentina em 2002. Em vez de participar dos panelaços, aprendeu a dançar com a mulher. Hoje, ganham a vida passando o chapéu entre os turistas.

A Fernández Fierro é formada por garotos cabeludos e embala a paquera do público jovem ao sabor de Fernet com Coca-Cola

Em pleno corre-corre do Centro portenho, os dois sempre reúnem dezenas de pessoas. Os mais desavisados logo são atraídos por um lindo par de coxas morenas pairando no ar. A apresentação do casal é cheia de saltos e piruetas. Mais performática impossível. "É assim que o povo gosta", diz Florencia, em um perfeito portunhol, quase sem ar depois da apresentação.


Nos fins de semana, o endereço dos artistas são as ruas de San Telmo. Lá, além dos tradicionais casais dançando pelas ruas de pedra, há também uma dezena de clones dos mitos tangueiros. No meio de tanto vaivém, o som da Orquestra Típica Fernández Fierro se destaca. Engana-se quem pensa que seus doze componentes se apresentam todos bem trajados e com cara de bons moços. Ao contrário. Com calças rasgadas, cabeleira para lá de despenteada e barba por fazer, os garotos da orquestra mais parecem um bando de roqueiros. Mas quando começam a tocar, mostram que entendem mesmo de tango.

Criada em 2002, a Fernández Fierro hoje é referência entre o público jovem de Buenos Aires e também ícone do ressurgimento do interesse pelo tango por parte desse público. O sucesso do grupo é tamanho que das ruas de San Telmo o grupo foi para um antigo galpão no bairro da Balvanera, onde criaram o Club Atlético Fernández Fierro. O local reúne tangueiros e os mais variados estilos. Tudo regado a Fernet com Coca-Cola (uma mistura comum na Argentina).

Acordes no subterrâneo
Outra amostra do namoro entre o público jovem e o tango é o grupo Un Vagon, que mostra seu trabalho num lugar inusitado: os subterrâneos de Buenos Aires. Isso mesmo: o palco escolhido para a banda desfiar seu repertório composto por clássicos de Piazzolla foram os vagões da linha B do metrô portenho (ou subte, como dizem os moradores da cidade). César Pavón, líder do grupo, explica que eles escolheram o metrô porque consideram que na rua não teriam tanta atenção como têm próximo aos trilhos. "As pessoas estão mais relaxadas e aproveitam mais nossa música", afirma. O complicado é encontrar o grupo, já que ele não tem estação e horário fixo para se exibir. O lance é contar com um pouco de sorte para conferir a agradável e rápida apresentação.

O Esquina Carlos Gardel funciona no hotel em que o cantor bebia com os amigos, num prédio de 1900

Quem não quer andar de um lado para o outro atrás de bom tango pode optar pelas casas de show. Tudo bem que é algo para gringo ver, assim como os shows de mulatas no Rio de Janeiro, mas são parada obrigatória. A maioria oferece o pacote com jantar, mas não se anime: nesses shows, o tango dá de dez a zero na parrilla. Se o assunto é tradição, há dois endereços imperdíveis: Esquina Carlos Gardel e El Viejo Almacén.

O primeiro, no bairro de Abasto, está instalado no edifício do antigo Hotel Chanta, onde o cantor costumava se reunir para comer e beber com os amigos. No palco, quinze artistas e uma orquestra contam os anos dourados de Gardel ao som de clássicos como "Volver" e "Mi Buenos Aires Querido". Já o El Viejo Almacén é a mais antiga casa de shows em atividade na Argentina. Inaugurado em 1969, leva esse nome porque funcionava como uma antiga venda. Antes disso, em 1875, era sede do hospital britânico. Ou seja: o lugar respira história. Tombado pelo Patrimônio Histórico, o edifício conserva as características originais da época em que recebia os tropeiros que estavam de passagem por Buenos Aires. Não chegue lá pensando em ver um show com requintes de superprodução e fumaça para todo lado. Ao contrário de outras casas, o espetáculo agrada pela simplicidade.

Outras duas casas de shows, relativamentes novas no cenário portenho, também merecem destaque. No colorido bairro de La Boca, considerado por muitos como o berço da dança, está o Boca Tango. Inaugurado em 2005, tem uma localização estratégica: fica atrás do estádio La Bombonera, casa do Boca Juniors. O lugar é uma espécie de parque temático do tango. Além do restaurante, uma réplica do bairro no início do século 20 serve de cenário para uma divertida apresentação teatral que conta um pouco da história do tango e a influência dos imigrantes na dança.

Haja piso de madeira
Já o modernoso Hotel Faena, em Puerto Madero, é sede do espetáculo Rojo Tango, inspirado nos antigos cabarés portenhos. Sob o lema "Amor, paixão, loucura e glamour", o espetáculo tem um toque de ousadia e erotismo que pode não agradar aos mais conservadores. Mas isso pode ser o ponto alto que o faz diferente dos demais. No palco, há gigolôs, mafiosos, prostitutas e damas da sociedade e até a recriação de uma cena do filme Moulin Rouge, quando os bailarinos dançam ao som de "Roxanne", de Sting.

Depois de ver tantos rodopios pelas ruas e casas de tango, aqueles que já estão cansados de apreciar a dança como meros espectadores têm de ir às milongas, que são os bailes onde se dança o tango. Buenos Aires conta com aproximadamente 120 casas do tipo, endereços certos para quem quer arriscar os primeiros passos, não quer pagar os preços muitas vezes exorbitantes das escolas de tango e aprender a dançar como um portenho. Praticamente todas as milongas têm aulas abertas antes do início de cada baile.

Em um salão dos anos 40, no charmoso Palermo Viejo, está La Viruta, uma das mais famosas da cidade, que chega a receber quase 1000 pessoas nos dias mais concorridos. O lugar recebeu esse nome porque viruta em espanhol é a lasca que se solta da madeira. Como o chão do local é feito desse material, os portenhos costumam dizer que os casais dançam até raspar o chão. Não tão longe dali, os tangueiros de carteirinha também costumam lotar o Salón Canning e o Club Villa Malcolm, este inaugurado nos anos 60. Além de Palermo, as milongas costumam fervilhar por San Telmo, Abasto, Montserrat, Boedo, San Nicolás e Balvanera, os bairros mais próximos do Centro.

A milonga do arco-íris
Quem quiser conhecer milongas mais inusitadas e estiver disposto a ir um pouco mais além do circuito tradicional não pode deixar de incluir em seu roteiro a Sunderland, em Villa Urquiza, e La Glorieta, em Belgrano. A primeira é realizada em um clube. Todos os sábados, moradores do próprio bairro começam a preparar a festa no final da tarde. Às 22 horas, o cenário está montado. Uma quadra de basquete se transforma num imenso salão de baile. O arrasta-pé vai até as 4 da manhã.

Já La Glorieta é a milonga mais pitoresca de Buenos Aires. Em uma praça do século 19, um conservado coreto serve de pista de dança para mais de 600 pessoas. A milonga começou como uma reunião de amigos há onze anos e hoje atrai visitantes de toda parte. Como o espaço é pequeno e a grana é curta, não há orquestra. O som fica a cargo de Marcelo Salas, um dos criadores do evento, que escolhe os temas favoritos em seu discman. As aulas são gratuitas e para lá de agradáveis. Entre os professores está a aposentada Olga Tomasone, de 65 anos, mas com disposição de 30. Viúva há seis anos, ela começou a freqüentar o lugar para esquecer a morte do marido. É uma das figuras mais simpáticas e divertidas da milonga. Puxar papo com ela não é difícil. Em questão de minutos ela já lhe convida para dançar. Olga diz que, depois de alguns anos sozinha, está à procura de um namorado, e confessa: "Os meus preferidos são os turistas!".

Nas milongas, qualquer um pode arriscar seus primeiros passos de tango depois de uma aula. Há 120 delas na cidade
Há mesmo tango para todos os gostos e preferências em Buenos Aires. O arco-íris na porta do número 444 da Calle Maipú, no centro da cidade, dá a pista do que o visitante vai encontrar. A milonga La Marshall, inaugurada em 2004 pelo professor de tango Augusto Balizano, é a primeira destinada ao público GLS de Buenos Aires, cidade que cada vez mais ganha status de gay friendly. Na entrada, os freqüentadores são recebidos pelos donos do local e levados até as mesas, que precisam ser reservadas com antecedência devido à alta procura. A palavra de ordem do lugar é a discrição. Balizano faz questão de explicar que as pessoas podem paquerar, mas o que vem primeiro é o amor pelo tango. Desde que abriu as portas, a milonga recebe não só casais gays, mas também de heterossexuais. Prova de que o tango não tem preconceito e está sempre se renovando.

Outras informações no site www.tangodata.gov.br


Revista Próxima Viagem
Edição 88 - Fevereiro de 2007

0 comentários: